28 junho 2011

Pelas Ruas de Brasília

OBS: O texto que segue abaixo é de autoria de Marcelo Torres, jornalista, baiano, cronista e radicado em Brasília, por ser uma bela homenagem à cidade.

De repente, cá estava eu nesta bela cidade de retas e curvas, endereços lógicos, cartesianos, cheios de siglas e números; endereços que chegam a dar tédio e raiva de tão lógicos, racionais, exatos.

Ao chegar aqui e me deparar com setor disso, setor daquilo - tudo certinho, bonitinho, organizado, sem precisar perguntar um ponto de referência para chegar a algum endereço -, não sabia se era a cidade que era estranha ou se eu é que era um estranho no pedaço.

O brasiliense costuma dizer que sua cidade é normal, estranhas são as outras. Dependendo do referencial, ele tem razão. Aqui, depois que se acostuma, você vê que isso tudo faz sentido - e como faz.

Familiarizado com as ruas personalizadas da Bahia de todos os santos, eu me senti um capiau na capital futurista do eterno país do
futuro. Senti-me um estranho numa cidade estranha aos meus olhos.

Seria a identificação na estranheza? Acho que sim, eu viria saber depois.

A verdade é que, antes de chegar aqui, eu nunca havia parado para imaginar o que seria uma cidade sem rua, sem avenida, sem praça, sem travessa, sem esquina, sem bairro. É isso mesmo! Brasília não tem nada disso!

Nunca pensei que pudesse ir a um endereço desconhecido sem perguntar "é perto de quê?" ou "Qual é o ponto de referência?" Sim, porque em Salvador o endereço ou fica perto de uma igreja, ou é vizinho de um supermercado, ou fica na subida de uma ladeira, ou depois da sinaleira à esquerda.

Em Brasília, não. Basta uma sigla, um número, uma letra e outro número e pronto! SQS 304 E 205. Todo brasiliense parece ter nascido sabendo que se trata da quadra 304 Sul, bloco E, apartamento 205.

Apesar de pequeno, só 10 caracteres, este é incrivelmente um endereço completo, exato, preciso. É mais fácil do que saber o nome do edifício. Aliás, em Brasília quase todo edifício tem um nome, mas ninguém sabe - nem mesmo o morador – e não precisa saber.

Nos
lagos Sul ou Norte, basta SHIS QI ou QL e quatro dígitos que o endereço estará completo e absolutamente achável. Ninguém tem dúvida do que seja um endereço tipo "SHIS QL 21-2-3" ou "SHIN QI 10-7-6".

Trata-se de endereços do
Lago Sul e Lago Norte, respectivamente. SHIS significa Setor de Habitações Individuais Sul, ou seja, Lago Sul. SHIN é a mesma coisa, sendo que o N é de Norte (Lago Norte).

QL é Quadra do Lago e QI é Quadra Interna. E os números indicam, pela ordem: quadra, conjunto e casa. Se você mandar uma carta para "João Silva, QL 22-7-9, Brasília", chega lá rapidinho, não precisa nada mais.

Com um mês e pouco aqui, você acaba aprendendo e achando tudo muito fácil também. Você fica batizado, entrou nos eixos, virou candango. E ai de você que não aprenda logo as coordenadas...

Em Brasília, se você perguntar "É perto de quê?", a pessoa pode lhe achar um ET, um louco, um debilóide. Aliás, outra coisa difícil é alguém parar outrem na "rua" para perguntar por um endereço. Muito dificil.

Mas Brasília tem seus pontos de referências, que saem na ponta da língua de todo e qualquer morador. É um tal de Eixão pra lá, eixinho pra cá, W3, L2, L4, essas esquisitices de letras, siglas e números.

O problema é que a explicação é sempre complicada.

O morador de Brasília acha que tudo é muito fácil - e óbvio -, mas o visitante não entende bulhufas do turbilhão de informações que lhe são passadas em bombardeio.

"De um lado tem as pares, duzentas, quatrocentas, seiscentas, oitocentas", explica o anfitrião. "Do outro, as ímpares, novecentas, setecentas, quinhentas, trezentas", conclui ele, crente de que se fez por entender.

Pela explicação, você pensa que de um lado só tem par e do outro só tem ímpar, e não é assim. De um lado ficam as quadras que começam com dígito par (de 201 a 216, de 401 a 416...) e do outro ficam as que começam com dígito ímpar (de 101 a 116, de 301 a 316...).

Se você levar ao pé da letra, ou melhor, ao pé do número, constará que tanto num lado como em outro há pares e ímpares. Outra coisa engraçada é que os anfitriões falam a seqüência completa das pares. Quando vai citar as ímpares, eles não dizem a última...

- Novecentas, setecentas, quinhentas e trezentas.

E você, na levada, fica esperando eles falarem das centas, mas eles não dizem, evitam, pensando que é "errado" (se as "centas" não estão no dicionário, as "duzentas", "trezentas", "quinhentas" também não estão).

Eu só sei que é muita informação para um baiano só. Afffff!!!!! Era muita coisa para minha cabecinha, tudo despejado de uma vez. Eu ficava sem nem saber por onde começar, não sabia nem o que perguntar...

Chegava uma hor da explicação que eu já estava pensando em voltar. Não pra Bahia, mas para o ensino fundamental, para um supletivo de 1º grau. E o anfitrião, sem saber da sua angústia, lhe dá um golpe de misericórdia.

- Não tem erro, é tudo muito fácil.

E aí, se tudo é muito fácil e você não sabe, então você se sente um burrico, um asno, um orelhudo.

Quadras comerciais e residenciais, entrequadras, superquadras, blocos, asas, eixos, eixão, eixinhos, setores, números pares e ímpares... Em meio a tudo isso, no terceiro dia aqui, estava eu procurando a quadra 309 Norte.

- É nas ímpares - me orientou aquele que seria a anfitriã.

E lá fui eu. Entrei na Asa Norte e fui seguindo placa e mais placa, até chegar até a 209. Da 209, um número ímpar, caí direto na 409, outro número ímpar, sem passar pela 309, que na minha ideia ficaria no meio das duas - mas não ficava.

Depois de rodar feito um doido, parei perdido e liguei para baiana brasiliense que me convidara.

- Onde cê tá? - ela atendeu.
- Passei pela 209, já tô na 409 e não vi a 309...
- É do outro lado, cê tá nas pares...
- Não, eu tô nas ímpares.
- Entenda, Marcelo, aí ficam as pares...
- Ué, mas 209, 409 não são ímpares, não?
- Não, 209 é par, fica nas duzentas...
- Peraí, em qualquer lugar, 209 é ímpar...
- Não, aqui em Brasília é par, é a lógica da cidade...
- Que lógica é essa?

E ficamos nesse é par, é ímpar, é par, é ímpar - até a bateria do meu celular descarregar e eu voltar para casa, desistindo do encontro, triste, me sentindo um traste, um nada. Nem sei como acertei voltar para a quitinete onde estava naquela primeira semana. Solitário, não tive ninguém para perguntar.

No dia seguinte, porém, a primeira coisa que fiz foi falar para os colegas de trabalho sobre a minha odisséia noturna pelas ruas, ou melhor, pelas quadras pares e ímpares.

Eles juntaram uns dez. Eles riram, riram muito. Mas fizeram fila para me explicar tudo, tin-tin-tin por tin-tin-tin, quadra por quadra. Do alto do 21º andar de um prédio no SBS.

E foi assim que fui entender essas "lógicas" brasilienses. Aí, meio sem jeito e sem graça, liguei para Flavinha e acertamos os ponteiros, fizemos as pazes, entre risadas pares e ímpares.

*Marcelo Torres é jornalista, baiano, cronista, radicado em Brasília
blog (
http://marcelotorres.zip.net).
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